.pequenininho

julho 4, 2021

Pequenininho, quase posso ouvir-te os passos
Vejo-te a sombra, teu semblante tão perfeito
Cada cantinho desta casa tem seus traços
Ainda sinto teu cheirinho quando deito

Teu bigode-capim a farejar espaços
Que ainda hoje, todos teus, têm o teu jeito
Tua partida não pôde romper os laços
Com que fiastes tanto amor em nosso peito

Saudade: ouvir teu pai falar com ti, nos braços
Dobrar-te as orelhinhas e tu, tão bem feito
Fingias não gostar de tão fortes amassos
Ao que fechavas teus olhinhos, satisfeito

.tu me vês?

novembro 3, 2020

Tu me vês? Meu peito ardente
Vês que vivo ‘inda a sangrar?
Tu me enxergas, descontente
E versando ao suspirar?

Tu que viste como eu era
Haverias de encontrar
Qualquer sombra de quimera
Que restou do meu olhar?

Dize: não é impossível
Enxergar-me a pequenez?
Eu pensei ser invisível
Diz, baixinho: tu me vês?

.canto às almas fugidas

julho 21, 2020

Oh, bem aventurados que partiram
A vós qualquer perdão é concedido
Tendes vosso valor reconhecido
E o pranto dos que, em vida, vos feriram

Ausentes almas, sois tão bem amadas
Há belos templos em vossas memórias
Em risos, tantos cantam vossas glórias
Os erros? Nada mais que águas passadas

Mortos, queridos mortos, tão serenos
Sois como divindade: puros, plenos
Mereceis a mais nobre compaixão

E os vivos, falhos seres a mirar-vos
Sustentam, tão somente, sonhos parvos
E, um dia, hão de alçar vossa perfeição

A dor é, para mim, um lugar bem conhecido. Poucos que me veem, por fora, vão acreditar que uma pessoa para quem a vida foi tão generosa, e que ostenta tamanho ar de equilíbrio, possa carregar tanta dor. A carapaça que eu construí, parece, ficou bem feita. Meu excesso de preocupação com a dor dos outros fez com que eu deixasse a minha guardada, num lugar que visito, vez ou outra, mas que tem pouco espaço para existir. É que eu sei como é doer, eu sei bem a sensação de se sentir despedaçar, como se cola nenhuma no mundo fosse capaz de te deixar inteira de novo. Por isso, tenho essa urgência de querer curar todo mundo. Por isso, deixo-me arrancar os pedaços, como se pudesse matar a fome dos famintos. E de tanto me voltar para fora, deixei a minha dor ali, diminuída e deslegitimada, como se ela não fosse, mesmo, enorme. Como se fosse vergonhoso me permitir doer num mundo já tão ferido. Mas, para mim, ficar à superfície nunca foi suficiente. Quanto mais tento guardá-la num lugar escuro, mais ela me chega, sem avisar. E me atropela. E me inunda até a cabeça, para que eu não consiga respirar, apenas senti-la. Ela me pede para ser vista. Eu costumo descer nas profundezas e olhá-la nos olhos – nunca quis me entorpecer. Mas existe algo que me faz, logo, querer voltar ao mundo dos vivos, e talvez – pensando bem, com certeza – muito antes da hora. Volto com alguma poesia, algumas palavras escritas e até compreensão. Mas, ainda, incompleta. Eu volto porque precisam de mim. Mas também por buscar algum alívio para o que me parece mais do que consigo suportar. Tantas vezes tentei ser diferente, não sentir com tamanha profundidade. Eu quis ser menos complicada. Mas todo esse processo de autoamor e aceitação precisa passar por aceitar que eu vim ao mundo toda ferida. A minha intensidade deve ser, também, sinal de força. Se eu posso enxergar a dor é porque dou conta dela, sem enlouquecer. Eu preciso dar conta, por todas aquelas que vieram antes de mim. Todo sofrimento é um sinalizador, olhar a ferida é o primeiro passo para a cura, é não deixar que vire infecção. Sempre fui a estranha que gosta de cicatrizes. Eu vou, então, decidida, aceitar meus machucados, mesmo que não pareçam ter sentido. Vou me amar aos pedaços, porque passei tempo demais tentando juntá-los para receber amor. Muita gente se aqueceu na minha luz, mas eu preciso, com toda licença, ir dançar com a escuridão.

Eu sempre tive um coração aflito
E ouvia um canto de onde eu não sabia
Foi pra mostrar meu lado mais bonito
É que eu cismei de fazer poesia

Mamãe dizia: és desajeitada
Tua cabeça vive em fantasia
É que eu criança, sempre tão errada
Quis inventar o mundo em que eu vivia

Fiz amizade com a esquisitice
Que fez de mim um ser desajustado
Ao escrever fiz com que o mundo ouvisse
O meu cantar outrora enclausurado

.lunar

maio 9, 2020

Poder maior não há que a força feminina
Que, como as águas, é profunda fortaleza
Dos ciclos ao redor do sol é dançarina
Carregando, por dentro, toda a natureza

Sutil força-mulher semeia a terra nua
Sustenta, como seu, o sofrimento alheio
Sangrando a morte ao ventre seu a cada lua
Num tom vermelho d’outro filho que não veio

E desce, qual Perséfone, à profundidade
Do escuro submundo, onde, ao morrer, renasce
Trazendo à superfície a face da donzela

Na fase cheia é mãe, minguando em feiticeira
À escura noite baila às chamas da fogueira
Da vida-morte-vida, és, mulher, sentinela

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Foto: @brookeshaden

 

 

 

 

.toda amor

fevereiro 17, 2020

Eu te peço: ouve o canto da sua alma, esta voz sutil que se escuta no silenciar. Sinta e siga o que faz cada célula do seu corpo vibrar diferente. Você sabe, no fundo sempre soube, mas se esqueceu. Quando a sua intuição chamar, por favor, atenda.
Sempre me senti viva foi no me entregar. Quando mais me aproximei de mim foi quando me deixei rasgar o coração. Nunca me senti em casa na superfície. Sou vulnerável no meu amor, eu me aprofundo e me transbordo. O amor é de quem sente – e nunca em vão. Não conto com garantias de um caminho sem dor – e a dor é vida derramando. Mas me entorpeço na paixão que me renasce a cada morte que deixo vir, a cada pedaço que me deixo arrancar.
O amor é livre para ir – liberdade maior é escolher ficar. Com devoção, deixo-me levar. Hoje eu sou amor todinha. Eu inspiro abundante vida. Eu expiro a pulsante poesia.

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.senhor j.

abril 1, 2019

J. trabalha e mora aqui no prédio. Sempre foi calado, tem um jeito sisudo e os olhos fundos… Um dia, sentou do meu lado, num ônibus para Belo Horizonte, e falou tanto, que meu pescoço entortou. Me contou, meio sem jeito, que não gosta de polícia. Quando era novo, os homens revistaram ele no ônibus, a caminho do trabalho. Trataram J. que nem bandido, “por causa do tom da sua pele e da sua cara de pobre”. J. trabalha muito, desde sempre, e por isso sentiu vergonha e muita raiva. Às vezes chego tarde em casa, vejo J. lavando a garagem e digo: “Seu J., vai descansar, hoje é domingo”. J. me contou que, desde que perdeu sua menina, para uma gripe, há três anos, nunca mais parou de trabalhar. “Ela era o amor da minha vida, a minha alegria”. Desde então, ele ocupa todo o seu dia carregando peso nas obras, e de noite faz a limpeza no prédio. Sua esposa faz o mesmo, em outra cidade. Eu queria dizer àquele senhor franzino, de olhos bons, e que não acredita em Deus, que ele tinha que se permitir sentir essa tristeza. Viver o luto, falar sobre a sua dor, procurar ajuda profissional, ou espiritual. Mas quem sou eu? Quem sou eu pra ensinar a este homem tão forte como se deve carregar o mundo?

.terra sagrada

outubro 1, 2018

Eis aqui meus frios ossos
Eis os últimos destroços
Da mulher que fui um dia
Eis o sangue derramado
Sobre o solo abençoado
Onde dorme a poesia

Eis meu despedir tardio
O franzino corpo frio
Desta breve poetisa
Eis atormentado pranto
Eis-me aqui: quem sentiu tanto
Esta dor tão imprecisa

Eis o verso em que me inundo
E este meu amor profundo
Desperta sonhos dormentes
Eis a imensidão sagrada
Desta terra fecundada
Eis aqui minhas sementes

.dúbia maria

setembro 17, 2017

Corre em meu corpo o sangue de Maria Helena
Maria Helena, te conheço bem a dor
És, de minh’alma, doce parte, tão serena
Minha ancestral, que traço à mente em fina flor

Linda Maria, tua saia de açucena
Tão delicada, roda em vã melancolia
Teu riso frouxo que contrasta à tua pena
É parte deste ser tão dúbio que és, Maria

Maria Helena, teu bailar em dois extremos
Levou-te à insânia da qual ambas perecemos
Desde menina, teu cismar compreendia

Em delirantes vôos por brancas quimeras
Tive-te ao lado em breves quinze primaveras
Nas quais, tão louca, herdei-te toda a poesia

 

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Estes meus mortos postos a meu fino toque
Trazem mais vida do que o fraco peito meu
O sangue quente do que há tão pouco morreu
Mais colorido é que a vida a meu enfoque

Silentes mortos, dizei aos sonhos partidos:
Sem tê-los perto, morro um pouco a cada dia
Contai, inertes corpos, da melancolia
Que vive agora nestes meus olhos perdidos

Purpúreo tom que escorre às mãos em borbotões
Mais calmaria tem que as minhas aflições
Rubro, contrasta com minha pele esmaecida

Mortos calados, vós sabeis de meus vazios
De almas fugidas, tendes vítreos olhos frios
A refletir a paz que eu nunca tive em vida

.triste esperança

abril 23, 2017

Minha esperança, tu vieste de repente
O nome teu eu não chamei nenhuma vez
Tu percebeste minha enorme insensatez
Ou viste tu a cor de um coração doente?

Breve esperança, peço que me deixes só
Deixa eu despedaçar-me como deve ser
Deixa o meu sonho mais bonito fenecer
Que em breve tudo que me importa vai ser pó

Tola esperança, vai! – não és aqui bem-vinda
Alguma força eu consigo ter ainda
Não traz de volta meu cismar tão sonhador

Vês? A alegria já passou em despedida
Desilusão ficou: é velha conhecida
Triste esperança, não vem disfarçar-me a dor

.desta dor

janeiro 4, 2017

Como ter olhos contentes
Se me laceram os dentes
Da verdade que consome
Miséria de toda sorte
É o pranto, é a morte
É a fome, é a fome

Meninos de pés descalços
Com a morte em seus encalços
A ceifar-lhes sua aurora
Meu Deus, vivem como bicho
A se alimentar do lixo
Que outra gente jogou fora

Um velhinho abandonado
Olhos turvos de passado
E seu suspirar vazio
Senhora Mariazinha
Vai enovelando a linha
De seu derradeiro fio

Breve alento rarefeito
Parte e dá lugar no peito
À tristeza intempestiva
A fugir de meus assombros
Sempre carreguei nos ombros
Esta dor de se estar viva

.o palco

agosto 17, 2016

Eu era ainda uma criança caladinha quando veio, pela primeira vez, a sensação que iria me acompanhar durante toda a vida. A de que todos sabiam exatamente como agir, enquanto eu, ensimesmada, a olhar o mundo lá fora, tentava adivinhar onde pisar. Como quem chega atrasada logo no dia em que os roteiros do teatro foram distribuídos, sinto nunca ter conhecido meu papel. Não soube as minhas falas, a hora de entrar em cena, ou quando me retirar. Tudo sempre pareceu mais fácil aos demais – convictos, bonitos, afinados, a andar com firmeza pelo palco, alegrando a plateia. Mais espectadora que atriz, eu era, contudo, protagonista da minha vida, e por isso, tive que dar meus passos. E no enredo que se desenhava enquanto eu ia improvisando, nunca deixei de tentar encontrar alguma lógica, algo que me fizesse sentir parte de uma obra maior. E, no entanto, as coisas nunca, de fato, se encaixaram. Quem há de encontrar, por exemplo, sentido na morte? Não aquela morte, ao fechar das cortinas, depois de um longo espetáculo. A morte que, hoje, tenho às mãos, numa proximidade que não pode esconder o virar dos olhos: bruta, brusca, inoportuna. Aquela que interrompe a apresentação no meio e manda todos de volta pra casa, sem devolver ingressos. Eu que, ao longo dos anos, vinha tentando encontrar meu roteiro perdido, sinto o peso de pensar que, talvez, jamais tenha havido roteiro algum. E, despida sobre o palco, levo nos braços uma dor que às vezes parece demasiado pesada, enquanto ao peito carrego um amor que jamais pensei que me coubesse. Com os olhos cansados da busca por este provável motivo de tudo, vacilante, vou movendo, encenando quadro a quadro, como penso que deve ser. Vou tentando fazer bonito.

.retalhos

junho 25, 2016

Quero poder chorar, silenciosa
Que o mundo não me quer saber da dor
Nem quer ouvir meu verso redentor
Ou escutar de mim nenhuma prosa

Tentei fugir pra casa – não há jeito
Ao que o rumo de casa eu já perdi
Sou alma solta, andando por aí
Carrego a dor do mundo junto ao peito

Ao mirar-me, pergunto, confundida
O que ainda existe e qual lado morreu?
O que restou de mim que ainda sou eu?
Qual parte me levou embora a vida?

E as brumas desta imagem imprecisa
Enturvam o meu coração antigo
Não haverá no mundo algum abrigo
Para tão retalhada poetisa?